A idade dela vivia na casa dos oitenta. Se não vivia lá, era vizinha.
Almoçamos juntos em mesas separadas. O meu olhar teimava em tomar conta dela. Eu não queria, mas fui criança curiosa durante todo o almoço.
A nossa escolha só diferiu na bebida. A mesa dela segurava um copo de tinto sem garrafa. Só o copo. O vinho parado mostrava que ela pouco ou nada lhe mexeu. Era só um enfeite.
Uns óculos de sol grandes, como os que usam as raparigas novas, estavam deitados ao lado do prato. Era um prato rectangular, ao contrário da mesa quadrada.
A comida que caiu no prato foi quase a mesma que se levantou. O apetite não estava por ali. Apareceu por lá, já no fim, um leite creme sorridente. Esse sim, foi capaz de mexer com a gula daquela senhora sozinha.
Ela tinha um olho pisado. O direito. Um pisado profundo que saía do olho para lhe apanhar parte do rosto. Os óculos eram o esconderijo daquele hematoma. O café, que foi o ponto final daquela refeição, já foi engolido de óculos na cara. Havia um cheiro a vergonha no ar. Vergonha de ser vista. Vergonha de ser confrontada. Vergonha.
Eu devia ter evitado cada olhar meu. Devia, mas não consegui. Fui curioso. Tive pena. Aquilo que ali estava não foi sem querer. Aquilo tinha um motivo. Aquilo foi maldade. Tenho a certeza. Não me perguntem porquê, mas eu tenho a certeza do que digo.
Os nossos olhares cruzaram-se várias vezes e sempre que o faziam o dela caía na mesa. Tinha medo que o meu entendesse o que se cruzava com ele.
Ela saiu curvada, agarrada a uma tristeza sólida e palpável. Nunca mais a vi. Foi há uma semana. Como foi que aquilo aconteceu eu não sei, mas a mim também me doeu.
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