Está frio na rua e chove. Chove muito lá fora. O vento quase que corta.
Entrei em casa molhado por gotas de água gordas que trespassaram a minha roupa e deixaram os poros da minha pele em bicas de pés. Estou gelado, cansado e farto deste dia que me consumiu neurónio a neurónio, de forma lenta e quase sádica.
Quero um sofá cheio de mantas, almofadas não, que não gosto, e uma lareira a trabalhar como se não houvesse amanhã, que me aqueça cada centímetro do corpo, mas que me aqueça, também e por favor, a alma que está mais cansada que o resto.
O sofá ignorou-me e a lareira fez de conta. A casa escura parece ainda mais fria, mas ela está as duas coisas. A casa está fria e está escura. Está horrível. Está como eu não queria.
Não falei da fome mas ela também está aqui comigo. É do tamanho do mundo. Cansado, gelado, com fome e uma casa que mais parece não me querer. Posso, então, acreditar que não falta nada para estar pior. Mas falta. Faltas tu. Tu que ainda não chegaste. De alegre só tenho um pensamento comigo que me diz que tu vais efectivamente chegar e mais alegre que esse só o que me conta que não demoras.
A vontade manda-me sentar naquele sofá despido a olhar para a estúpida da lareira apagada e para fazer tempo até que tu entres pela aquela porta vou-me entretendo a secar a roupa molhada no corpo. Preparava-me para lhe obedecer, à vontade, quando pensei que tu não tens que passar pelo mesmo que eu. Não tens mesmo. Era egoísmo da minha parte apresentar-te a casa tal como eu a conheci quando entrei. Vamos então alterar isto por e para ti.
Pousei o cansaço, o frio e a fome num canto e enchi o peito de coragem para voltar para a rua. Mais molhado era impossível de ficar e tu mereces coisas que a casa não tem. Lá fui eu, tipo louco, no meio da chuva, sim, eu detesto guarda chuvas, tu sabes. Levei na minha mente a lista de tudo aquilo que tu merecias naquele fim de tarde. Fui num pé e voltei no outro. Tinha que ser rápido, a tua chegada estava próxima.
Cheguei a casa pousei o que comprei, acendi a lareira, enchi o sofá de mantas e almofadas, eu não gosto delas, mas tu gostas, tomei um banho rápido, vesti uma roupa confortável, preparei um lanche que serviria ao mesmo tempo de jantar, recheado de coisas que tu adoras. Fiz-te um chá quente, o teu corpo iria chegar gelado, eu sabia disso, e precisavas de o aquecer. Coloquei os croissants, que estavam ainda quentes, na mesa, tal como tu sempre pedes. O café foi feito na hora, é assim que tu o preferes. Os doces estavam lá, bem ao lado das bolachas, sei que para ti é uma mistura perfeita. Aqueci uma pizza no forno, a que tu mais gostas. O sumo era natural e de laranja, como tu fazes questão que seja. Depois da mesa pronta, dirigi-me à casa de banho, preparei o teu banho, liguei o aquecimento e deixei o teu pijama por lá, pela hora eu sabia que era o que ias vestir.
Sentei-me no sofá e enquanto olhava para aquele lume selvagem ia contando os minutos para a tua chegada. Ouvi a chave na fechadura, eras tu. Só podias ser tu. Chegaste coberta de chuva, os teus cabelos compridos e lisos pingavam água dos céus, a tua cara estava cansada e o teu corpo vinha farto do dia. Pousaste a tua carteira e suspiraste um "que dia maldito". Logo vi que o banho era o teu destino, deixei-te ir mesmo sem o beijo que me dás sempre. O teu cansaço exigia a minha compreensão. Fiquei a sorrir e a pensar que ias adorar o banho e as condições por mim criadas para ele. Esperei por ti como quem espera pela vida, tardavas e o relógio sem parar. Passado algum tempo dirigi-me ao quarto e vi que o banho era uma etapa ultrapassada. Encontrei-te deitada e coberta até aos teus olhos que estavam já fechados, o teu corpo vivia um sono profundo e eu podia ficar chateado porque ignoraste todo o meu trabalho, mas sorri, sorri porque poucas coisas são mais belas que o teu dormir.
Saí do quarto. Lanchei sozinho, sentado no sofá, em frente à lareira e a pensar em que como é bom saber que tu respiras a dois ou três metros de mim. O teu cansaço sobrepôs-se a todo o trabalho que tive e a tudo o que preparei para ti, é verdade, mas eu entendo-te, mesmo quando não parece.
Antes de me deitar peguei numa bandeja e enchi-a de coisas boas, essa bandeja ficou na tua mesinha de cabeceira, do teu lado, à espera do teu despertar, e nela deixei um papel que dizia "Amo-te na mesma!".
Durante a noite, sem acordar, acabaste por me abraçar. Foi o teu obrigado inconsciente.
speechless!
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