tu não és de te queixar e isso, só por si, deixou-me alarmado. Quem estava comigo na hora ouviu várias vezes, num curto espaço de tempo, que aquilo não era normal. Contudo, e com o passar dos dias, fui-me acalmando e esqueci o susto. Para mim não tinha passado disso mesmo, sou sincero. Infelizmente não era. Nem de perto nem de longe. Era um aviso sério. Era o mundo a começar a desabar. Era o inicio de uma batalha. Era a vida a dizer-me que não acontece só aos outros.
E de repente, sem que nada o fizesse prever, começamos a viver uma realidade que nunca tinha sido nossa. As baterias de exames, as conversas com os médicos, as salas de espera, as opiniões que nunca eram iguais, as duvidas, as pesquisas na internet, o querer entender aquilo, o imaginar vários finais, a vontade de desaparecer, o querer dormir e nunca mais acordar, o acreditar que aquilo não estava a acontecer, o desejo de arranjar uma solução para ti, o falar desesperado com meio mundo à procura de alguém que me desse uma resposta, a desorientação camuflada, o ter a certeza que a vida não estava a ser justa, a revolta que me consumia, a cabeça às voltas à procura de uma justificação para aquilo e o medo. O medo, pai. O medo de te perder. O medo de te perder era tão grande, mas tão grande. Tu não imaginas. Senti-me pequeno, insignificante, inútil, frágil e incapaz. Quando tu mais precisavas de ajuda eu nada podia fazer. Nada, nada, nada. A única coisa que eu podia fazer era pedir a Deus que não te abandonasse, que não te deixasse partir para longe, que não permitisse a tua dor e que te desse força para lutar. E pedi, pai. Pedi muito a Deus. De janela aberta, a olhar para o céu, nas noites frias que passaste longe de mim. Em todas elas, sem excepção, eu pedi a Deus para tomar conta de ti.
Abandonei o meu mundo para entrar no teu. Prescindi de tudo para estar perto de ti. Era assim que tinha que ser. O amor que te tenho não me permitia viver para fora daquelas paredes que durante uma semana foram tuas, foram minhas, foram nossas.
Terça-feira, treze de novembro. Ainda não eram nove da manhã, lembras-te? O parque de estacionamento cheio. Eu à procura de lugar e vós, tu e a mãe, a caminhar para o desconhecido. Nunca me irei esquecer deste dia. Sei-o de cor. A este e a todos os outros lá vividos. Lá dentro eram cadeiras cheias de gente calada. Partilhavam-se dores em silêncio.
Quando chamaram por ti e te encaminharam para o quarto eu prometi a mim mesmo que não te iria largar e era ali, bem do teu lado, que eu ia viver aquele pesadelo. Jurei a mim mesmo que ia ser forte, que ia ser o homem da casa e que nunca, em momento algum, eu iria chorar à tua frente. E não chorei, pai. Nunca me viste chorar, pois não? Agora, passado este tempo, posso dizer-te que chorei. Chorei muito. Chorei todos os dias. Chorei sempre que entrei no meu quarto. Sozinho e até não poder mais. Em cima da minha cama eu fui criança desprotegida. Sem ninguém saber. Embrulhado num desespero que não tinha medida. Esmagado por uma agonia que tinha o peso de mil mundos. Foram assim as noites em que o que nos separava não eram metros mas sim quilómetros.
No dia de todas as decisões eram sete e dezanove quando te mandei uma mensagem de bom dia. Respondeste logo de seguida. Uma resposta pronta que mostrava a ansiedade e o nervosismo natural do que havia para viver. Dizias que estava tudo bem, mas não estava. Não estava, nem podia estar. Essas mensagens, que nada de especial diziam, carregavam mais sentimentos que abraços e beijos juntos. É por isso que as guardo. É por isso que as leio muitas vezes.
Eram oito e trinta quando entramos no hospital, eu e a mãe, e tu estavas à porta do teu quarto a olhar para o fundo do corredor, como uma criança assustada que espera por alguém que lhe afague o cabelo e que lhe diga que está tudo bem. Dizias que não estavas nervoso e aparentemente não estavas, mas só Deus sabe o que te ia na alma. Se já no dia anterior eu quase conseguia apalpar a tua ansiedade quando olhavas para a janela enquanto um quarto cheio de gente fazia um barulho que a ti nada te interessava, naquela hora esse sentimento tinha que ser gigantesco. Tinha que ser, pai.
Mandaram-te preparar. A tua hora estava a chegar. É nesta altura que o corpo se contorce com os nervos. É neste preciso momento que a ansiedade trepa pelo nosso corpo de uma forma galopante. É ou não é? É. Eu sei que é.
Deixaram que fosse eu a empurrar a maca. Fui eu que te levei até ao bloco operatório. À entrada do mesmo mandaram-me parar e ordenaram as despedidas. O que se sente ali, na hora, não se explica, consome-nos. A mão que fica teima em agarrar a mão que vai e a despedida dá-se quando as duas peles deixam de se tocar. Fica o vazio. Lágrimas descontroladas dançavam no parapeito dos meus olhos. Eu calado pedia a Deus que estivesse atento, que não se distraísse com nada, que olhasse apenas e só para ti. O mundo deixou de ter importância. O meu coração batia mais rápido sempre que alguém saía por aquelas portas de vidro. O tempo foi passando. Os minutos que pareciam horas caminhavam devagar. As horas lá foram passando e as noticias começaram a chegar. Correu tudo bem. Ele está bem. Foi melhor do que estavam à espera. Ele já vai sair. Aí eu voltei a respirar. Sim, tenho ideia que estive sem respirar cerca de três horas. Quando tu saíste, pai, rodeado de gente da saúde, numa maca que não era a tua, cheio de tubos e de fios, eu congelei. Estavas de olhos fechados, com um tubo enfiado na boca, rodeado de pessoas que te empurravam como se aquele fosse o último dia da tua vida. Eu caí no vazio. Aquilo tinha corrido bem? Aquele aparato não era isso que dizia. Do nada, sem ninguém contar, no meio daquele cocktail de sentimentos dizem-nos que nos cuidados intensivos só podem entrar duas pessoas a acompanhar. Cuidados intensivos? Misturei o que estava a ver com o que estava a sentir e juntei-lhe aquela informação. Foi uma bomba no meio do meu peito. Pensei o pior. Deixei de pensar. Fiquei em parafuso. Alguém me explique o que se está a passar. Já dentro desse serviço que lida com vidas presas por fios de arame ficamos a entender que aquele procedimento era normal. Era o previsto. Para eles. Só para eles que lá trabalham. Nós, os que sentimos, não tínhamos previsto nada daquilo.
As visitas de dez minutos pareciam que tinham o tempo do inspira e expira. Era um flash. Quando entrei disseram-me que estavas sedado que não ias falar, nem reagir. Olhei para ti e vi-te como nunca te vi. Frágil, nas mãos da vida, capaz de nada. Peguei na tua mão esquerda e tu apertaste a minha enquanto levantavas o teu polegar direito. Eu sorri enquanto ouvia que aquilo não era normal. Não era suposto tu reagires. Essa tua reacção inesperada de que nem tu próprio te recordas deixou-me capaz de explodir. Os sentimentos submersos vieram à tona. A capa que eu tinha naqueles dias caiu-me. Fiquei despido de forças e quando saí de perto de ti explodi. Numa cadeira daquelas que é feita para se esperar eu chorei. Chorei como se não houvesse amanhã. Chorei tanto que quase não conseguia respirar. Tremia no meio das lágrimas. Foi até onde aguentei. Foi o meu primeiro choro público. Ver-te como te vi não me deu outra alternativa. Não foi fácil para mim nem para ninguém que te viu como eu te vi. Quem lá passou sabe bem do que eu estou a falar.
O passar dos dias trouxe uma evolução que foi sempre favorável. Eu disse a quem tratou de ti que tu eras forte como ninguém. É verdade, pai. Não conheço ninguém com a tua força e a tua capacidade de sacrifício. Foste guerreiro. Nem lá, onde eras frágil, te deixaste ir abaixo. Nem mesmo naquela sala que só era publica vinte minutos por dia, onde a tua companhia eram monitores que apitavam e tubos que te incomodavam tu caíste.
De dia para dia melhoraste. Os médicos olhavam para ti com admiração, surpreendidos pela tua capacidade de sofrimento e pela tua evolução clínica. A tua recuperação deve-se a quem cuidou de ti, a quem te tratou, é verdade, mas muita dela é responsabilidade tua. Só tua.
No dia em que te deram alta, em que peguei em ti e te trouxe para casa eu senti que voltei a ter vida outra vez. O meu respirar voltou a chamar-se viver. Voltei a dormir a poucos metros de ti. Deitava-me e podia descansar, tu estavas outra vez a partilhar o mesmo tecto que eu e isso é tudo.
Hoje agradeço a Deus por ter cuidado de ti, agradeço-te a ti por teres sido o herói que sempre foste e agradeço à vida por me ter ensinado que não acontece só aos outros.
No dia de todas as decisões eram sete e dezanove quando te mandei uma mensagem de bom dia. Respondeste logo de seguida. Uma resposta pronta que mostrava a ansiedade e o nervosismo natural do que havia para viver. Dizias que estava tudo bem, mas não estava. Não estava, nem podia estar. Essas mensagens, que nada de especial diziam, carregavam mais sentimentos que abraços e beijos juntos. É por isso que as guardo. É por isso que as leio muitas vezes.
Eram oito e trinta quando entramos no hospital, eu e a mãe, e tu estavas à porta do teu quarto a olhar para o fundo do corredor, como uma criança assustada que espera por alguém que lhe afague o cabelo e que lhe diga que está tudo bem. Dizias que não estavas nervoso e aparentemente não estavas, mas só Deus sabe o que te ia na alma. Se já no dia anterior eu quase conseguia apalpar a tua ansiedade quando olhavas para a janela enquanto um quarto cheio de gente fazia um barulho que a ti nada te interessava, naquela hora esse sentimento tinha que ser gigantesco. Tinha que ser, pai.
Mandaram-te preparar. A tua hora estava a chegar. É nesta altura que o corpo se contorce com os nervos. É neste preciso momento que a ansiedade trepa pelo nosso corpo de uma forma galopante. É ou não é? É. Eu sei que é.
Deixaram que fosse eu a empurrar a maca. Fui eu que te levei até ao bloco operatório. À entrada do mesmo mandaram-me parar e ordenaram as despedidas. O que se sente ali, na hora, não se explica, consome-nos. A mão que fica teima em agarrar a mão que vai e a despedida dá-se quando as duas peles deixam de se tocar. Fica o vazio. Lágrimas descontroladas dançavam no parapeito dos meus olhos. Eu calado pedia a Deus que estivesse atento, que não se distraísse com nada, que olhasse apenas e só para ti. O mundo deixou de ter importância. O meu coração batia mais rápido sempre que alguém saía por aquelas portas de vidro. O tempo foi passando. Os minutos que pareciam horas caminhavam devagar. As horas lá foram passando e as noticias começaram a chegar. Correu tudo bem. Ele está bem. Foi melhor do que estavam à espera. Ele já vai sair. Aí eu voltei a respirar. Sim, tenho ideia que estive sem respirar cerca de três horas. Quando tu saíste, pai, rodeado de gente da saúde, numa maca que não era a tua, cheio de tubos e de fios, eu congelei. Estavas de olhos fechados, com um tubo enfiado na boca, rodeado de pessoas que te empurravam como se aquele fosse o último dia da tua vida. Eu caí no vazio. Aquilo tinha corrido bem? Aquele aparato não era isso que dizia. Do nada, sem ninguém contar, no meio daquele cocktail de sentimentos dizem-nos que nos cuidados intensivos só podem entrar duas pessoas a acompanhar. Cuidados intensivos? Misturei o que estava a ver com o que estava a sentir e juntei-lhe aquela informação. Foi uma bomba no meio do meu peito. Pensei o pior. Deixei de pensar. Fiquei em parafuso. Alguém me explique o que se está a passar. Já dentro desse serviço que lida com vidas presas por fios de arame ficamos a entender que aquele procedimento era normal. Era o previsto. Para eles. Só para eles que lá trabalham. Nós, os que sentimos, não tínhamos previsto nada daquilo.
As visitas de dez minutos pareciam que tinham o tempo do inspira e expira. Era um flash. Quando entrei disseram-me que estavas sedado que não ias falar, nem reagir. Olhei para ti e vi-te como nunca te vi. Frágil, nas mãos da vida, capaz de nada. Peguei na tua mão esquerda e tu apertaste a minha enquanto levantavas o teu polegar direito. Eu sorri enquanto ouvia que aquilo não era normal. Não era suposto tu reagires. Essa tua reacção inesperada de que nem tu próprio te recordas deixou-me capaz de explodir. Os sentimentos submersos vieram à tona. A capa que eu tinha naqueles dias caiu-me. Fiquei despido de forças e quando saí de perto de ti explodi. Numa cadeira daquelas que é feita para se esperar eu chorei. Chorei como se não houvesse amanhã. Chorei tanto que quase não conseguia respirar. Tremia no meio das lágrimas. Foi até onde aguentei. Foi o meu primeiro choro público. Ver-te como te vi não me deu outra alternativa. Não foi fácil para mim nem para ninguém que te viu como eu te vi. Quem lá passou sabe bem do que eu estou a falar.
O passar dos dias trouxe uma evolução que foi sempre favorável. Eu disse a quem tratou de ti que tu eras forte como ninguém. É verdade, pai. Não conheço ninguém com a tua força e a tua capacidade de sacrifício. Foste guerreiro. Nem lá, onde eras frágil, te deixaste ir abaixo. Nem mesmo naquela sala que só era publica vinte minutos por dia, onde a tua companhia eram monitores que apitavam e tubos que te incomodavam tu caíste.
De dia para dia melhoraste. Os médicos olhavam para ti com admiração, surpreendidos pela tua capacidade de sofrimento e pela tua evolução clínica. A tua recuperação deve-se a quem cuidou de ti, a quem te tratou, é verdade, mas muita dela é responsabilidade tua. Só tua.
No dia em que te deram alta, em que peguei em ti e te trouxe para casa eu senti que voltei a ter vida outra vez. O meu respirar voltou a chamar-se viver. Voltei a dormir a poucos metros de ti. Deitava-me e podia descansar, tu estavas outra vez a partilhar o mesmo tecto que eu e isso é tudo.
Hoje agradeço a Deus por ter cuidado de ti, agradeço-te a ti por teres sido o herói que sempre foste e agradeço à vida por me ter ensinado que não acontece só aos outros.
estou... sem palavras... que coisa linda!
ResponderEliminarBrutal primo! Muito Bom, MESMO!
ResponderEliminar