quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Os Tordos

O João escreveu uma carta ao Fernando. O filho escreveu uma carta ao pai. O Fernando foi para o Brasil e deixou o João em Portugal. O pai foi e o filho ficou. O pai é cantor e o filho é escritor.
O menino, já grande, tornou publica uma dor que é normal em quem vê os braços de um pai partirem para longe dos seus. O menino, já grande, disse que o seu pai partiu porque tinha uma reforma de "duzentos e poucos euros" e "uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores". O menino, já grande, partilhou com os portugueses que o seu pai ganhava "à bilheteira" em "salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias". O menino, já grande, sente-se feliz porque admira a coragem do seu pai por "começar outra vez num país que quase desconhece".
As redes sociais tornaram esta carta viral. As televisões fizeram reportagens, os jornais deram-lhe páginas e as revistas guardaram-lhe folhas. O país emocionou-se com a dor do João. Os portugueses levantaram-se para aplaudir o Fernando. Alguns portugueses, nem todos, diga-se. Eu, por exemplo, não o aplaudo, nem sinta que tenha que o fazer. Muito sinceramente.
Lamento, como filho que sou, toda e qualquer separação de um progenitor e da sua cria, grande ou pequena, rica ou pobre, conhecida ou desconhecida. Lamento-as todas e sempre.
Admiro, como já aqui o disse por várias vezes, todos os que um dia tiveram a coragem de ir. Infelizmente tenho por esse mundo fora muitos familiares, amigos e conhecidos, a viver sabe Deus como e a trabalhar como se não houvesse amanhã para poderem cá chegar quando o sol dura muitas horas por dia com um sorriso no rosto a fazer de conta que lá fora "é que é".
O Fernando chama à sua suposta emigração uma "ida ao Brasil" e descansa os entes queridos ao dar como certo o seu regresso a Lisboa "no fim de Abril". O Fernando, segundo o João, "partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão". O Fernando, antes de ir, foi lá ver como era aquilo. O Fernando diz que "no plano cultural, o nosso País vive um dos seus tempos mais sombrios".
Os que emigram, os que emigram a sério, vão sem saberem quando voltam. Os que emigram, os que emigram a sério, levam o medo do que vão encontrar e, muitos, um filho ou dois na mão. Os que emigram, os que emigram a sério, partem para o desconhecido, sem saberem bem onde vão dormir e comer. Os que emigram, os que emigram a sério, dizem que na mesa deles não há de comer, que o frigorifico parece um armazém abandonado, que o dinheiro não chega para pagar uma casa pobre e a luz e a água que por lá se gasta.
Ó João, imagino que te doa saberes que o peito onde já muito terás chorado está agora a milhares de quilómetros de ti e que entre vós vive um oceano chamado Atlântico. Ou melhor, nem imagino. Não imagino, nem quero imaginar. Desculpa-me o egoísmo. Quanto à reforma do teu pai, essa maldita, que só pesa duzentos e poucos euros não devia merecer um lamento publico, mas sim uma pergunta direccionada. Devias perguntar ao teu pai por que raio ele não descontou durante uma vida inteira em consonância com o que ganhava. Sim, João, porque se o teu pai ganhava, como tu dizes, "à bilheteira", sendo certo que cantou muitas e muitas vezes para milhares de pessoas, mesmo que ganhasse só um euro por pessoa, que não ganhava, ele tem que ter ganho muitos milhares de euros durante todos estes cinquenta anos de carreira. Declarou-os, João? Fez descontos, João? Pergunta-lhe. Estás feliz pela coragem do teu pai, mas eu não entendo essa tua felicidade. Até entendia que estivesses feliz se o teu pai fosse um corajoso de verdade, mas no fundo ele apenas decidiu mudar-se para um país tropical, onde estará, por certo, bem instalado a fazer aquilo que mais gosta e, claro está, a ser ressarcido pelo que faz. Vou-te contar uma coisa: os meus pais também gostavam de emigrar para o Brasil, para terem uma vida tranquila num país quente e simpático, tal como o teu pai quis, mas se um dia isso acontecer eu vou ficar triste, muito triste, e se alguma alegria me tocar, será a alegria de saber que eles estão a gozar a vida conforme merecem e pela qual trabalharam. Não lhes vou chamar corajosos. Isso chamo ao meu pai que foi para Angola lutar pelo nosso país, sabe Deus em que condições, e no fim nem a um obrigado teve direito.
O país está mal e vai continuar, porque nós por cá continuamos a andar ao colo com aqueles que não precisam e escondemos os que realmente são necessitados por baixo destas histórias de encantar. Felizmente nem todos os portugueses andam a dormir e é por isso que muitos não se levantaram para aplaudir esta história supostamente triste. É preciso é que os que ainda dormem acordem de uma vez por todas e entendam que há quem não tenha dinheiro para comer e para pagar um tecto.

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