quinta-feira, 14 de junho de 2012

O Sr. Rogério

Dividiu um quarto de hospital com alguém a quem eu só quero bem. Há uns dias atrás, não há muitos.
Carrega com ele oitenta e sete anos de vida. Um livro de histórias, de certeza.
É bonito ele. Quase não tem rugas na cara e tem uns olhos da cor do céu no verão. Tem uma educação antiga e uma humildade que chega a ser constrangedora. É um homem como já não se fazem.
A cama do hospital era culpa do coração dele que batia fraco porque já batia há muitos anos e quando ele estava a recuperar dele uma queda parva, que não tem nem pode ter outro nome, provocou-lhe um coágulo no cérebro que o deixou fraco e sem a força mental que tanta falta faz quando se está lá dentro. O Sr. Rogério foi outra vez abaixo. O braço e a perna dele tremiam sem que ele mandasse.
Viveu tudo isto sem visitas, sozinho, deitado a olhar para o nada e a perguntar pelos dele. Todos os dias perguntava. Nós, os que estávamos junto à cama do lado, não entendíamos e chegamos a um estado de revolta. Quem teria coragem de deixar um senhor ainda mais fofo que o algodão largado numa cama de hospital? Rapidamente ficamos amigos dele. Todos nós, sem excepção. Ajudávamos a dar-lhe a comida, a levantar-lhe a cama, a chamar quem ele precisasse e, o mais importante, a falar com ele. Eu ligava-lhe a televisão no futebol. Ele dizia que não ligava à bola, mas eu dizia-lhe que tinha que ligar. Nunca me disse o clube dele. Ou não tinha ou não quis dizer. O seu vizinho de quarto passou a ser a base dele, a companhia e a força que tantas vezes lhe faltou.
Depois de começarmos a falar com o Sr. Rogério entendemos que ele não perguntava pelos dele num tom depreciativo. Ele perguntava por eles porque estava preocupado. Dizia ele que a mulher estava ainda pior que ele e que o assustava muito saber que ela estava sozinha e doente. Falou-nos de três filhos, dois  separados dele por muitos quilómetros e outro para sempre. Deus levou-lho.
Um dia que era domingo trouxe-lhe visitas. A mulher e um casal de sobrinhos. Quando ele viu a mulher que é dele há cinquenta e nove anos juntou as palmas das mãos, ergueu-as e agradeceu a Deus em voz alta. A mulher, ciumenta que eu sei lá, falava que se fartava, estava cheia de saúde, pelo menos mental. A falta dele provocou-lhe um derrame. É o chamado amor em estado puro. Contou-nos muitas histórias, rimos muito. Por mim ficava dias seguidos a ouvi-la. Na hora da despedida chegou-se ao marido que ali estava prostrado e depois de um "anda cá homem, dá-me um beijo" eles juntaram os dois lábios como se fossem dois jovens na flor da paixão. Foi das coisas mais bonitas que vi. As lágrimas sentaram-se na beira dos meus olhos.
Entretanto o alguém a quem eu só quero bem, com a graça de Deus, teve alta e o Sr. Rogério, coitado, ficou lá sozinho. Triste que eu sei lá. Dizia que ia deixar de comer porque já sabia que ia morrer e por isso não valia a pena. Tentar animá-lo era perda de tempo. Ele recusava-se a sorrir. Esperava a morte já impaciente, chateado com o tempo de espera.
Na hora do adeus prometemos-lhe visitas personalizadas, só para ele. Ele agradecia ao mesmo tempo que dizia que isso era conversa nossa, daquela que se usa para animar os outros e não para cumprir. Enganou-se. Fomos lá vê-lo. Só a ele e só por ele. Todos os dias teve visitas nossas. Todos os dias até ao dia em que se foi embora. Não foi para casa, é certo, mas foi para o hospital da sua localidade, onde trabalha a sua sobrinha, coisa que ele nos disse cheio de orgulho. Eu todos os dias liguei para o hospital para saber dele. No último telefonema informaram-me que o senhor que foi dono da cama 433 já tinha ido embora e que ia muito bem. Recuperou do coração e do cérebro. O corpo dele já não tremia sem ordem. Ia bem. Dentro do possível ele ia bem.
O Sr. Rogério prometeu-me um lanche a preceito e umas cerejas que, segundo ele, são uma especialidade e eu prometi que lhe ia dar muita despesa. Faço questão de ir a uma aldeia pequena, a cerca de uma hora da minha, procurar por ele. Antes terei que ir ao hospital que fica mais ou menos à mesma distância. Eu sei disso.
Este homem que eu conheci sem contar quando o meu mundo caiu ao chão provou-me que um coração nobre não tem preço, mostrou-me o que é ser um senhor no verdadeiro sentido da palavra e ensinou-me que nada é mais belo que sentimentos puros. Nunca o esquecerei, aconteça o que acontecer. O Senhor Rogério.

1 comentário:

  1. Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra! Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por acaso.

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