domingo, 23 de maio de 2010

Página 2

Ele tenta construir uma frase que encaixe nela. Ela quer a frase que ele não consegue soltar.
As palavras vão-se ordenando e vão encaixando no seu desejo. Falta só a coragem para que ela saiba o que ele pensa. O silêncio ganha lugar naquela mesa, naquele momento que era para ser só a dois e agora ganha um terceiro elemento: o tal silêncio.
O coração dispara e o cérebro ordena, chegou a hora dele esquecer que é timido. Ele esquece mesmo e pergunta-lhe se ela quer sair dali. Ela fala-lhe da chuva que ele já esqueceu. O vidro húmido impede que a visão dele seja perfeita, mas a chuva que ele vê não lhe parece impeditiva de nada.
Volta a tentar. Ela sorri e levanta-se. O convite está aceite. Abre-se a porta de um desejo e a chuva só arrefece vontades, não consegue fazê-las desaparecer. Saem os dois calados a sorrir.
A água que cai das nuvens toma conta deles bem rápido. Eles caminham molhados mas quase que não notam. O frio não existe quando há desejo. Quando há desejo só há desejo.
A mão dele entra no bolso direito e tira a chave do fim da chuva. Ela pára e sabe que ele quer levá-la a casa num carro que pode ser perigoso. Fica reticente. Entra ou não? Uma coisa de agora pode permitir esta situação? Ficar cara a cara será de fácil dominio? Tantas dúvidas e só uma certeza: ela quer muito ir com ele. Diz-lhe que não quando não lhe apetecia mais nada para além de entrar naquele carro. Ele abre a porta do passageiro e chama-a. Os dois molhados como loucos querem o mesmo, contudo ela tem algo que não lhe permite ir e diz-lhe que quer, mas não pode. Ele pergunta porquê e ela responde com um "não interessa", o que o deixa logo com a certeza de que interessa e muito.
Ele fala-lhe de uma boleia simples e de uma chuva que não pára, segura-lhe no braço e encaminha-a para o interior do carro. Ele contorna meio carro e senta-se do lado dela. Arrancam. Molhados, calados, frios, mas felizes com a situação.
Ela dá-lhe as coordenadas e ele segue ao ritmo da voz dela. Até que chegam ao destino.
Ele pára o carro e olha para o vidro onde a chuva salta compulsivamente. Ele quer saber o que "não interessa" e ela devolve-lhe a mesma resposta. Ele conforma-se. A dúvida vai com ele para casa.
Está na hora. Ela não sabe porquê, mas quer muito abraçá-lo. Informa-o disso e ele fica corado de alegria. Perde poder de fala e entrega-se a ela. Os braços deles envolvem os corpos de cada um. A energia que os une é intensa, eles sabem disso.
Quando ela se prepara para o largar e afastar-se dele, recebe um beijo na face e pára o movimento do corpo, quer aproveitar o momento. Ele dá-lhe um beijo tão suave como a pele dela, e dá-lhe outro mais perto da orelha, desce ao pescoço e beija-a de novo, sobe e beija o canto da boca dela, quer autorização para continuar. Ela fecha os olhos e entrega-se àquele pecado.
O carro era mesmo perigoso.
Os lábios dão inicio a um silêncio que nem duas linguas juntas conseguem interromper. O beijo é bom demais. Ambos têm a certeza. Mas tem que parar por ali.
Ela abre a porta e sai do carro. Já cá fora baixa o corpo e volta a encarar os olhos dele. Está uma frase pronta a ser entregue. Ela sabe que vai doer, mas o que tem que ser tem muita força.
"Já gosto muito de ti, mas...". Fica o barulho da chuva a bater em chapa molhada. Ele pede-lhe para terminar a frase depois de afirmar que sente o mesmo que ela, mas sem o "mas".
Ela ganha coragem e termina. "Mas tenho uma pessoa na minha vida". Bate a porta e vai embora.
Continua...

Sem comentários:

Enviar um comentário